Entre
um atendimento e outro médica e enfermeora se abraçam- Foto: Márcia Foletto
Na rotina estressante dos intensivistas, é difícil não se
render, em alguns momentos, ao cansaço- Foto:Márcia Foletto
Há um contraste nítido. Uma correria diante das variações do
quadro de saúde dos pacientes, e a solidão silenciosa e incontornável dos
doentes na UTI para coronavírus do hospital Copa Star, em
Copacabana. Ali, quem tem acesso é a elite, mas a doença é democrática e vem
lotando leitos país afora. Já ultrapassou a capacidade de algumas UTIs privadas
e públicas. Não há lógica ou rota identificada para o vírus, repetiam os
médicos ouvidos durante as 13 horas em que a equipe do EXTRA presenciou a
rotina da unidade intensiva.
Os
sons ao redor, cada um indicando uma emergência distinta, a corrida permanente
da equipe de 60 médicos e 300 auxiliares, que se revezam em turnos, o silêncio
da morte sem choro nem despedida e a solidão dos pacientes dão o tom nítido da
diferença entre essa e outras enfermidades que frequentam as UTIs. A evolução
da doença é rápida e desconhecida, mesmo para os mais experientes
profissionais.
Os
médicos, em roupas azuis, e enfermeiros, em vermelho, observam em monitores
dados do quadro respiratório de cada internado, como a saturação, que mede o
nível de oxigenação do sangue e é um alerta para a gravidade do quadro. Todos
os olhares em computadores e quartos. A rotina da UTI A, com os pacientes mais
graves, é militar. Os poucos minutos de pausa são para ir ao banheiro ou beber
água. Parece simples. Mas demanda a retirada do capuz e da máscara N-95, usada
por todos os 300 funcionaríos da UTI. Com cuidado cirúrgico. Enfermeiras
atendem de hora em hora cada quarto, para verificar in loco o estado do
paciente
A
rotina, inteiramente nova para profissionais acostumados a lidar com o limite
entre a vida e a morte, inclui um momento-chave: o chamando round. Uma reunião
com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas respiratórios, auxiliares de
enfermagem, em seus computadores, em pé. Em frente aos quartos fechados dos
pacientes, detalham medicação, situação clínica, prognóstico e procedimentos
necessários. O round dura cerca de duas horas.
No
meio da reunião de quarta-feira, ao meio-dia, o drama. A família de um paciente
que morrera às 6h30 tentava convencer os médicos a se despedir do advogado, de
60 anos. O protocolo internacional proíbe. Um dos médicos deixou o round para
outra função que era inédita e se tornou rotina: convencer a família da
impossibilidade da despedida. O paciente recebeu o atestado de óbito com
suspeita de coronavírus. Não houve tempo para o resultado do teste, mas seu
quadro deixara clara que fora vítima da pandemia. Foi levado ao necrotério do
hospital em uma capa preta com zíper, pôde ser reconhecido à distância por um
parente. Foi cremado, como orienta o Ministério da Saúde.
—
É sempre muito difícil explicar essa impossibilidade, a morte sem a despedida —
diz o médico Saulo Beiler.
A
reunião, que seguiu paciente a paciente, ajuda a identificar possibilidades e
metas terapêuticas. Participam eventualmente os médicos particulares dos
pacientes. Em muitos casos com orientação expressa para não ressuscitar ou não
entubá-los, especialmente os mais idosos.
Drama
de quem “não pode’’ adoecer
O
drama de médicos e enfermeiros se amplia ao ver colegas internados. Há uma
estimativa no sistema público e privado de 25% a 30% de profissionais
contaminados. Dois médicos nesta situação pediram para falar com o EXTRA. As
curtas entrevistas demonstraram a agonia de soldados que queriam o front, não o
leito:
—
Tive falta de apetite, gosto amargo na boca, 37 graus de febre. Dois dias
depois veio a dificuldade de respirar. Sou há 45 anos intensivista. Achei que
era hora de fazer uma tomografia. Estava totalmente comprometido. Sinto saudade
dos meus netos. E de estar no olho do furacão, onde sempre estive — diz o médico,
que é intensivista no Hospital dos Servidores, José Everardo Torres, de 69
anos.
Márcio
Ananias, de 53 aos, também intensivista, mas da UTI convencional do Copa Star,
teve tosse forte há duas semanas. Entrou em quarentena, perdeu olfato e
apetite, até que percebeu alteração drástica na frequência cardíaca. Foi
internado para uma tomografia. Ele relata que há duas semanas não conseguia se
levantar nem para sentar na cadeira.
—
Minha energia se foi. Mas ontem (terça) já percebi uma melhora de 10%. Eu
sempre soube que essa pandemia seria uma tragédia por causa das comunidades,
dos nossos conglomerados urbanos. Me preocupo com o coronavírus entre os mais
pobres. Essa é uma doença que não faz sentido. Nenhum de nós ainda entendeu —
disse Márcio, com esperança de ter alta no dia seguinte.
Ele
voltou para casa na quinta-feira 16 de abril cedo. Disposto a voltar parar o
front, depois da quarentena que terá que passar. Na véspera, outro paciente,
entubado, deixava a emergência para ocupar o leito de UTI deixado pelo que
morreu no dia 15.
Material
descartado e incinerado
Os
pacientes com doenças como diabetes ou hipertensão são os mais propensos à
entubação. Mas não há uma média clara de idade. Na UTI dos pacientes graves,
estava um rapaz de 37 anos.
—
Já atendemos pacientes de 30, de 95. No total 25%, das mortes acontecem em
pacientes que não são obesos, idosos ou diabéticos — explica o diretor-geral do
Copa Star, João Pantoja.
No
andar reservado a pacientes com Covid-19 fora da UTI, há 14 espaços que os
médicos chamam de pressão negativa. Neles, existe uma coifa que suga, filtra e
renova o ar. A pressão atmosférica ali é mantida mais baixa do que no restante
do hospital. Isto é para impedir que o ar contaminado saia ou entre das salas e
da UTI com pacientes contaminados, espalhando o vírus. Na saída, médicos e
demais funcionários retiram os acessórios essenciais, como a máscara N-95. Todo
o material usado nos pacientes e roupas é descartado e, em alguns casos,
incinerado.
Em
cada quarto, o silêncio muitas vezes explicado pelo entubamento, pela
inconsciência ou mesmo pela depressão, que se tornou efeito colateral de uma
pandemia de um vírus desconhecido do mundo.
—
Tudo mudou. São novos protocolos, equipamentos. Aumentou a dimensão do
trabalho. Sinto muita falta de entrar nos leitos sorrindo e receber um sorriso
de volta, de conversar com o paciente — disse a a enfermeira Andrea Zavalis.
Perplexidade
e angústia
Os
médicos demonstram perplexidade e angústia no dia a dia da UTI.
—
Não sabemos sobre o vírus. Não há certezas sobre evolução. O paciente pode esta
bem em um dia e piorar no outro, não há o remédio certo — sintetiza o
plantonista Saulo Beiler.
Ninguém
esquece, no entanto, que o lugar ali é de salvar vidas. Há otimismo. Há
cumprimentos de cotovelos e abraços em horas de boas notícias. Ou mesmo quando
querem apenas lembrar um aniversário. Os médicos gostam ainda de se apelidar e
inventar brincadeiras. A humanidade vive entre fios, sustos e números da UTI.
Intensivista
há 33 anos, Fábio Guimarães Miranda, diretor da UTI de coronavírus do Copa Star
também demonstra a perplexidade com a doença.
—
Um amigo, meu braço direito, está internado aqui. Não esperava a pandemia desse
tamanho. Mas quando recebemos os primeiros pacientes, em fevereiro, vimos que
não é um vírus qualquer. Ele se dissemina de forma inédita. O organismo humano
tem memória zero em relação ao coronavírus. Ele age de forma diferente em cada
código genético. O único remédio que conhecemos é a prevenção, o isolamento.
Outra preocupação é que, se estamos atingindo o pico aqui, na classe média
alta, em uma ou duas semanas isso se replica na saúde pública. Também trabalho
no CTI do Hospital do Cérebro. Me sinto impotente e triste — diz Miranda.
Jornal Extra