Nos últimos dias, circularam em grupos de WhatsApp mensagens de lideranças religiosas de Bom Jesus desaconselhando fiéis a participarem da palestra. Uma das mensagens, atribuída ao pastor-presidente da Primeira Assembleia de Deus de Bom Jesus do Itabapoana, Fábio Rodrigues, afirmava que Milton Cunha foi o carnavalesco responsável pela encenação de um embate entre Jesus Cristo e o diabo no desfile da escola de samba Gaviões da Fiel, no Carnaval de São Paulo, em 2019. Na realidade, a reedição do enredo “A saliva do santo e o veneno da serpente”, originalmente de 1994, teve como carnavalesco Sidnei França, e a encenação da comissão de frente foi coordenada por Edgar Júnior. Inclusive, em entrevistas na época, Edgar Júnior citou que a cena foi mal interpretada, pois, após mostrar as agressões feitas pelo diabo, apresentava Jesus fortalecido, abençoando o público, com uma mensagem de que a fé e a perseverança são caminhos a serem seguidos. Em 2022, apesar de alegações da Liga Cristã Mundial de que a escola debochou do sentimento religioso dos cristãos, a Justiça de São Paulo decidiu que não houve ofensas à fé.
Procurada pela Folha, a assessoria do pastor Fábio Rodrigues informou que ele não vai se manifestar sobre o assunto. Ouvido sobre o tema, outro pastor local, Valdemir dos Santos, da Primeira Igreja Presbiteriana de Bom Jesus, alegou não ter participado do movimento contrário à palestra de Milton Cunha. Porém, disse ter sido informado de que a cobrança dos religiosos deveu-se a outros fatores, e a hipótese de ter sido motivada por “ofício, vida particular, opinião ou orientação sexual do palestrante” — que é homossexual — foi “desvio de assunto” relacionado a “lacração”.
— Vivemos numa democracia. Sendo assim, ele pode manifestar-se como quiser, bem como nós, com direitos amplos de também nos manifestarmos caso julguemos ter sido ofendidos em nossa fé, como foi o caso na Sapucaí — disse o pastor Valdemir. — Pelo que me foi passado, a cobrança dos líderes religiosos foi no sentido de o poder público trazer alguém de fora da área própria de atuação a fim de “palestrar reservadamente”, uma vez que as aulas foram canceladas, a professores/pedagogos, influenciadores. Pelo que entendi, os líderes religiosos, que também são cidadãos bonjesuenses, pais e participantes ativos em nossa sociedade, entendem que o investimento financeiro do poder público, o que é louvável, deve ser direcionado a algum educador próprio da área, entre tantos excelentes Brasil afora, inclusive pós-graduados ou PHD's, provavelmente indicados pelos próprios pedagogos do município — complementou.
Uma mensagem de WhatsApp similar à atribuída ao pastor Fábio Rodrigues foi compartilhada como sendo do padre tradicionalista Silvano Salvatte Zanon, da Paróquia do Senhor Bom Jesus Crucificado e do Imaculado Coração de Maria. Nela, direcionada a professores católicos, Milton Cunha não foi diretamente citado como carnavalesco da Gaviões da Fiel em 2019. Porém, consta uma recomendação para que os fiéis “pesquisem na internet informações sobre o que pensa o palestrante. Quem zomba de Jesus em um desfile de Carnaval, zomba da fé cristã, não merece sua atenção”. A Folha não conseguiu contato com o padre Silvano.
Líder da Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney, que engloba a Paróquia do Senhor Bom Jesus Crucificado e do Imaculado Coração de Maria, o bispo Dom Fernando Rifan afirmou também ter sido informado sobre a suposta relação entre Milton Cunha e a escola de samba paulista, que teria causado a insatisfação de cristãos bonjesuenses. Outra hipótese aventada foi a de que Milton Cunha teria feito o samba-enredo para o desfile da Mangueira, no Carnaval do Rio de Janeiro, em 2020, tendo como tema “A verdade vos fará livre”. Nesse desfile, assinado pelo carnavalesco Leandro Vieira e com samba de Manu da Cuíca e Luiz Carlos, a escola carioca apresentou uma releitura do Evangelho com várias faces de Jesus, recrucificado como negro, mulher e LGBT. Milton Cunha, que não é compositor e há muitos anos não atua como carnavalesco, também não participou dessa realização.
Numa entrevista prévia, Dom Rifan comentou ter entendido que a rejeição à palestra não deveu-se ao fato de Milton Cunha ser homossexual e defender o pluralismo religioso, “pois os católicos também pregam o pluralismo religioso e o respeito pelas pessoas homossexuais”. Após ser informado de que as informações compartilhadas por líderes religiosos em Bom Jesus eram falsas, disse que “se deve procurar sempre a paz e ouvir o que a população local tem a dizer”, não se aprofundando na polêmica.
Indagado sobre a articulação pela não realização da palestra, o presidente da Câmara Municipal de Bom Jesus, Léo Xambão, ressaltou que busca mais informações sobre o tema.
— Tenho escutado sobre esse ocorrido e visto algumas manifestações nas redes sociais, mas não tenho conhecimento para afirmar que vereadores teriam solicitado ao prefeito o cancelamento do evento. Após o ocorrido, ainda não consegui estar com o prefeito para solicitar explicações sobre o ocorrido. O que tenho escutado sobre os fatos, não tenho como afirmar se é verdade. São assuntos sérios demais, como intolerância e homofobia, para me pronunciar sobre, e preciso de confirmações — enfatizou Léo Xambão.
Também procurado, o prefeito Paulo Sérgio Cyrillo explicou que o festival Energia Para Ler estava sendo realizado desde o início da semana e que apenas na terça-feira (12), véspera da palestra de Milton Cunha, foi iniciado o movimento contrário por parte de lideranças religiosas, vereadores e outros membros da sociedade. Sem citar nomes, ele destacou que soube de notícias (falsas) sobre a participação de Milton nos citado desfile da Gaviões da Fiel, mas que outros bonjesuenses criticavam a participação do carnavalesco pelo fato de o evento ser vinculado à educação. Temendo manifestações incontroláveis, o prefeito se reuniu com a secretária municipal de Educação e os organizadores, ficando definido pela suspensão temporária.
— Em momento algum a gente traria a Bom Jesus qualquer pessoa, de direita ou de esquerda, para doutrinar crianças. O intuito desse evento é puramente educacional. Seria uma palestra motivadora, positiva para a cidade. Só que, por conta desse cenário, houve um risco para o artista, para a produção do evento, para a Prefeitura e para a própria sociedade, porque a gente não sabia a que tamanho isso ia chegar. Não tomamos uma decisão unilateral. Chamamos a produção do evento e conversamos, contando o risco do cenário — argumentou Paulo Sergio Cyrillo.
— Como foi tudo muito rápido na terça-feira, porque a palestra já era no dia seguinte, a gente suspendeu o evento temporariamente, até poder reunir todas as partes novamente. Eu não quis privilegiar nem ofender ninguém. Ainda não foi decidido sobre o encerramento do evento, está tudo muito recente. Sou totalmente contrário a polêmicas e extremismo, seja de um lado ou de outro. Foi uma coisa triste. Tenho 36 anos e não esperava estar envolvido em algo desse tipo. Foi muito pesado para mim. Mas, peço a Deus que nenhuma parte fique mal com isso e que tudo se esclareça da melhor forma possível — concluiu o prefeito.
Milton Cunha já estava em Bom Jesus do Itabapoana quando foi informado de que a sua palestra não iria ocorrer. À Folha, ele lamentou o ocorrido, mas disse que a repercussão é uma oportunidade para que se pense sobre a intolerância.
— Eu me declaro um humanista. Falo de humanidade, amor, superação, inventividade, criatividade. Falo sobre como você não vive só pagando boletos, mas aproveita a sua vida, essa coisa positiva, para que cada um busque a luz dentro de si. Eu vou para a cidade preparado para encontrar professores, famílias, sempre com muitas selfies, uma coisa maravilhosa. Agora, não sou católico, não sou cristão, e não está no contrato que eu tenha que ser. Eu sou ecumênico, sou do respeito a todo mundo. Mas, nós vivemos a época das fake news. Para eles conseguirem o que querem, eles inventam qualquer coisa. E são coisas fáceis de checar na internet se são verdadeiras ou não. Os exemplos citados não são verdadeiros. Então, eu lamento que a intolerância religiosa, junto com o preconceito de gênero, tenha roubado de Bom Jesus do Itabapoana o direito de conversar sobre humanismo — declarou o comentarista e palestrante.
— Acho que a gente vive nessa época de combater as fake news. É uma loucura o que inventam, e parece que as pessoas têm preguiça de checar. Mas, de qualquer forma, vou continuar fazendo as palestras, vou continuar indo aos outros lugares, porque a gente precisa colocar a religião no âmbito da vida privada. Religião é uma decisão íntima. A gente tem que respeitar as religiões dos outros. O que não pode é a religião querer legislar na vida civil de uma cidade. Isso não pode, porque a vida é maior do que a religião. A vida pulsa para toda a população. Que a religião fique no âmbito do íntimo, e que a coisa pública seja democrática, seja para todos. Se as cidades virarem só para um tipo de coisa, isso é muito ruim — finalizou.
Realizado pela empresa Motivos Produções, o festival Energia Para Ler é patrocinado pela Enel, com apoio cultural do Governo do Estado, e tem parceria com as prefeituras das cidades em que passa, entre elas a de Bom Jesus.
Fonte: Folha 1