"Os remédios eram amargos, ardidos, fugia-se deles e das mãos carinhosas, porém firmes da mãe, a guardiã do lar e da saúde. Joelhos ralados, braços machucados, dedões desafiados por paralelepípedos e tocos de mato, cortes, lanhaduras, lesões do futebol na rua, do carrinho de rolimã, da bicicleta, eram inevitavelmente tratados com merthiolate, iodo, éter, álcool misturado a outros ingredientes, e todos tinham que arder ou não passavam a certeza de eficácia.
Para beber, nenhum remédio era saboroso. Na careta, o nariz tapado, o corre-corre pelo quintal, (lembra-se do que era quintal/terreiro?), até ser laçado pelos braços maiores do que as nossas alturas, às vezes pelo pai, o cara dos últimos recursos e definitivos para filhos peraltas.
E se não aceitasse o atendimento pela conversa, ia pela força, contida, mas, necessária. Não existiam postos de saúde por toda a parte. Era em casa ou na farmácia, raras naqueles tempos, mas com farmacêuticos sabedores de mais ciência do que muitos médicos de hoje, dependentes de tecnologia até para diagnosticar um espinho no pé.
A analogia proposta pelo meme, joga a memória naqueles distantes dias, um estilo de vida sobrevivente até os final dos Anos 80, quando tudo começou a mudar. Mais apartamentos, mais cimento, menos quintais e ruas de chão batido, menos sítios e mais play-grounds. Mães trabalhando fora e superprotetoras quando em casa, controlando filhos para não se arriscarem lá fora. “Lá fora” passou a ser um mundo perigoso, cheio de estranhos, doenças, drogas, centenas perigos em cada metro quadrado. Filhos criados em gaiolas douradas com tudo às mãos. A emoção fria dos jogos eletrônicos, a ausência de ar livre, de árvores para trepar (o verbo servia para isso também) de muros para serem pulados, de imaginação para ser exercitada.
O medo como ingrediente principal da receita de sobreviver e não de viver. Somando-se a pais ausentes, mães solitárias, nenhum irmão, sequer um cachorro, porque causa alergia, porque transmite doenças e por isso, perde o menino ou a menina, o melhor amigo de infância que possa haver.
Filhos criados por educadores, psicólogos, supervisores, terapeutas, todos muitos preparados e úteis, mas… sem os incomparáveis pais.
Geração de creches o dia inteiro, de quartos trancados, de condomínios fechados, cresce tendo como referência a televisão e a internet, tudo vem por uma tela fria, sem a possibilidade da frustração de se perder uma disputa de corridas lá fora, do pique-esconde, pique-bandeira, queimada, amarelinha, futebol com chinelos servindo como baliza de gol, bola ou búrica, triangulo, pião, carrapicho, pipa e tantos outros quase desaparecidos, apenas preservados em alguns lugares do interior do país que cada um tem dentro de si.
Tomamos banho de rio, lagos, brejos, açudes. Tomamos banho de merthiolate e estamos aqui. Sabemos lidar com frustrações, com a presença das leis ( nossos pais eram A Lei), respeitamos os mais velhos.
Não morremos porque tínhamos limites e carências materiais. Não esmorecemos porque os remédios eram amargos ou ardiam. A vida é bife duro e não adianta querer amaciar para os filhos, pois ela sempre inverte as regras do jogo e não avisa.
Bateu saudades do merthiolate sim. E do olhar materno dizendo tudo sem uma palavra quando o amor em forma de repreensão era a ordem para resistir. Isso secava as lágrimas. Isso nos fazia lembrar de que homens podem até chorar, mas, abrir um berreiro, fazer pirraça, querer tudo facilitado não nos faria fortes.
Aprendemos do jeito certo. Só precisamos aprender a ensinar do modo certo. E a dizer não, porque o sim nem sempre significa amor.
Blog do Nino Bellieny